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As expsões no fundo do mar sucedem-se a um ritmo cadenciado pelo ciclo das marés.
Os meus pés assentes na areia sentiam a vibração daquelas cargas poderosas, enquanto olhava à distância de três km da costa a mónoboia que flutuava.
Mesmo ao longe imaginava o tamanho imponente que devia ter, pois via nitidamente as suas bocarras que pareciam os olhos de um polvo gigantesco, que na minha imaginação agarravam o submarino das 20 000 léguas de Júlio Verne.
Agora tudo estava pronto, finalmente tinham encontrado a solução de bombear o crude de super-petroleiros do tamanho de 25 campos de futebol sem acostarem ao porto de Leixões, que não tem fundo nem calado para tal.
O problema de falta de matéria-prima constante afectavam a refinaria com custos de refinação altíssimos, era necessário urgentemente encontrar uma solução. A média de trasfega no terminal existente entre a espera de um petroleiro no alto mar e a sua atracagem em condições de mar tempestuoso durava cem dias.
Engenheiros fizeram cálculos, quantificaram forças hidrodinâmicas, apresentaram mapas e contas num quadro, perante uma audiência pública e politica, a exposição tinha sido brilhante, Fantástico! Aplaudiram todos de pé, a apresentação da solução encontrada pela empresa Holandesa Visser que subcontratou a empresa SBM – Offshore Systems num projecto orçamentado em dez milhões de euros. Mas o mar não tinha sido convidado para esta festa engalanada de fatos de marca e enchárpes endoidecidas pelo vento que soprava.
14 Outubro de 1998,o mar está remansoso, a noite é bafienta coberta por uma neblina densa e alta.
Estou a pescar ao fundo sargos e robalos, com pena minha a cor da água não está boa para corricar, o ponto de água está óptimo, para poder estar a pescar num local afastado a 700 mtos deste de onde me encontro. O local é uma saída de águas residuais da Refinaria, ponto de encontro de muitos pescadores que sabem que os robalos gostam destas águas mais quentes para se abrigarem e encontrarem alimento. M. É um companheiro de pesca e amigo, de estatura mediana, pele escura, tem um sorriso branco, na casa dos seus 50 anos de vida, usa uma camisa de lã grossa preta de xadrez e gosta de contar anedotas e pregar partidas de pesca aos amigos.
20.30h. O super-petroleiro encosta no dia inaugural de funcionamento à mónoboia. A primeira trasfega vai começar. Ligam os tubos e alguém dá a ordem. Os oleodutos estão cheios de água. Servirá para calcular quando o crude que parte atrás, começar a encher os grandes reservatórios que o esperam dentro da refinaria.
A água será expelida pela tubagem, na direcção do mar onde M. e um companheiro estão a pescar.
21.30h. Está a dar um jogo de futebol importante na televisão, não há um piquete de segurança na saída das águas residuais… Os bombeiros não foram convocados nem colocados de prevenção. A administração da refinaria achava que não era necessário tamanho aparato. Todos os testes tinham corrido bem. A bombagem continua e os quadros de serviço dentro da refinaria, esperam pela contagem decrescente da saída de água, para iniciarem a transferência do crude para os reservatórios.
21.45h Tenho um belo sargo na mão, Mestre Z. M. também está a pescar a 100 mtos de mim.
21.50h Um pequeno fio negro de uma massa viscosa, negra, nauseabunda e sulfurosa corre pelo regato…
21.55h T. C., mais um companheiro, atravessam o regato e observam, nenhum deles está a fumar, decidem ambos corricar e o cigarro atrapalha os seus movimentos….
22.00h A peste negra era agora um rio caudaloso, furioso de Inverno que vai de encontro ao mar.
T.C tapa as narinas com um lenço, não consegue respirar e contorna o rio negro para regressar.
22.10h, A bombagem contínua, tudo parece normal, pelos cálculos dos engenheiros, a água inicial ainda não tinha sido vazada para o mar. Ninguém adivinha ou calcula que a força de um super-petroleiro a bombear equivale à força de uma comporta de uma mini barragem aberta….
22.15h T. C. Ao passar por M. e o companheiro, que pescam ao fundo a 50 mtos do rio caudaloso, sulfuroso carregado de gases, avisa-os de que a Petrogal está a fazer uma descarga poluente enorme.
22.16h M., curioso, brincalhão, alegre e sempre bem disposto a pregar partidas, caminha em direcção ao crude. Toda a área circundante está impregnada de gases altamente inflamáveis…
Nunca saberemos o que se passou a seguir….
22.20h Um sopro.., uma visão do inferno…, um vermelho intenso ilumina-me o rosto, fico cego e confuso momentaneamente, rebolo na areia e vejo o princípio do fim do mundo….
O mar está em chamas!!! Golfadas de labaredas atingem o tamanho de um prédio de 30 andares, rolos grossos de um fumo negro e espesso, elevam-se num turbilhão desordenado e voltam-se a enrolar como um cogumelo nuclear. Pelo mar adentro em centenas de mtos tudo arde. A Terra abriu uma brecha do seu interior e cuspiu uma parte do inferno!
Mestre Z. já corre na minha direcção, pega-me pelo braço arranca-me a cana e diz-me para fugir. Foge Simões! Desta vez é a sério!
Fugimos ambos. Pelo caminho vai-me dizendo (Z. é trabalhador também da refinaria, sabe dos graves problemas de segurança e manutenção existentes) o que poderia ter acontecido. Naquele momento não sabíamos de nada, qual a razão de todo aquele mar de sangue vermelho, mas algo de grave se tinha passado.
A minha face é agora iluminada por um dia vermelho, gaseificado, anunciando que afinal as trevas existem no meio de tudo, no meio de nós, como um humos bolorento agarrado à única tábua de salvação que temos, que é de facto a nossa, vida encharcada agora neste momento de suor, dor e angustia pelo que vai acontecer a seguir…
Umas botas…, umas simples botam de pescador…pingam de lágrimas vermelhas que escorrem num deserto de areia mergulhado num lençol branco que destoa no negro que se confunde com a noite, com a luz que se perde de um candeeiro vomitando petróleo que se consome a si próprio…
É esta a visão, a ultima visão que tenho destes acontecimentos…Nova explosão estremece o chão que me foge, sinto que agora tudo vai arrebentar pelos ares. Sirenes ecoam, gente que corre e M. é esquecido porque já não pode fugir, seu companheiro, um homem corpulento no seu peso de mais de 100 kg, aguenta a primeira carga e consegue correr na nossa direcção, fumegante cai sem sentidos a trinta metros de nós.
O crude numa voragem alimentada pelo oxigénio, desafia tudo e todos. Não satisfeito consumiu o mar e vira-se agora para terra, lambendo o regato, entrando pelas tubagens que o libertaram e num silvo estridente procura mais sangue, mais alimento que lhe possa servir até que o mar de chamas seja o inferno eterno do prenúncio final que todos esperamos um dia.
A salvação de toda a vila, chegou pela tampa estanque de segurança existente dentro da refinaria.
Já lá não estou para presenciar o resto nefasto dos acontecimentos. Rumo a casa, devagar como tantas outras noites de marés da minha vida, procuro não acordar a minha família que dorme inocentemente.
Procuro adormecer com o vermelho nos olhos, que não se apaga mesmo no escuro do meu quarto. Toca o telefone, toca a campainha, toca o vizinho. Todos sabem que ando ao mar por lá, todos sabem na vizinhança, as horas da madrugada, da noite em que regresso a casa. Todos querem saber se estou bem, se não fui eu que lá fiquei. Procuro falar em surdina, o coração suspenso pelo tic.tac, do relógio da cozinha.
Demasiado tarde. Aquele olhar dela atravessa décadas de gente ligada ao mar. Está-lhe nos genes, compreendeu o que aconteceu, está habituada. Sofre, eu sei, pela alma que vendi, ao mar, pelo custo que teve de pagar, por aceitar que as horas que passo em terra são consumidas a pensar quando lá vou voltar.
Epilogo: Nota do autor: Os nomes das personagens são omitidas para não ferir o sentimento, a susceptibilidade, das pessoas e famílias envolvidas. Todos os acontecimentos são reais testemunhados na primeira pessoana sequência numérica do tempo que se passou não é exacta. Não sei quantificar em minutos, horas exactas todos aqueles acontecimentos, procurando apenas reforçar a rápida fusão de tudo o que se passou.
Esta é minha única maneira de perpetuar o nome dos meus Amigos que desapareceram naquele dia.
Ambas as famílias enlutadas receberam uma indemnização da Petrogal. Não comento o valor nem a atitude demonstrada por ambas as partes.
Num orçamento inicial de dez milhões de euros a fasquia ultrapassou os 50 milhões de euros.
O mar de facto não foi consultado e no primeiro teste de Inverno após os nefastos acontecimentos a mónoboia não resistiu a vagas de 4 mtos. Segundo cálculos dos especialistas não resistiu a 50 % das condições de mar previsíveis… O equipamento construído só serviria e poderia ser usado em condições de mar calmo. Este sistema foi apenas utilizado no Canadá em situações de mar completamente diferentes da nossa costa. Até 2002 nunca esta Empresa apresentou certificados de qualidade exigidos pelo concurso ganho. A Galp meteu um processo à Empresa construtora no tribunal arbitral internacional e este decidiu em 2004 que a monoboia construída em Leça da Palmeira era absolutamente inadequada para as condições de mar existentes em Leixões. A empresa foi obrigada a pagar 50 milhões de euros de indemnização à Petrogal e a construir outro terminal oceânico.
A monoboia começou a funcionar em segredo no início de Agosto de 2007, com a bombagem de dois petroleiros num total de 210 mil toneladas.
A Inspecção-geral do Ambiente culpou a actuação negligente da Petrogal. Por pressão da Quercos, um belo dia chegaram duas retro-escavadoras à praia e abriram um rasgo de 150 mtos e colocaram um tubo no sítio do acidente. A Petrogal em dias de mar varrido e ventos de sudoeste invernosos, continua a fazer descargas poluentes longe do olhar humano.
António Simões